A Eurocopa Feminina de 2025, sediada na Suíça, não foi apenas uma campanha decepcionante para a seleção holandesa. Foi um marco doloroso de ruptura, um colapso institucional e esportivo que escancarou os problemas estruturais da equipe, da comissão técnica e, acima de tudo, da própria KNVB. Foi o fim de um ciclo e o começo de uma dura reflexão. Esta é a crônica completa, detalhada e com a profundidade que o leitor do FutebolHolandês.com.br espera, sobre os sete dias mais sombrios das Leoas Laranjas.
🔸 Domingo: O brilho ilusório após o País de Gales
A manhã de domingo começou com sorrisos em Spiez. A vitória tranquila por 3 a 0 sobre o País de Gales havia dado um alívio momentâneo à equipe e à torcida. O treino regenerativo aberto ao público foi, na superfície, um dia de alegria. Torcedores com camisas laranjas, familiares e crianças ao redor do campo. Jogadoras dando autógrafos, distribuindo bolas e posando para selfies. A sensação era de que tudo estava bem. Mas por trás das aparências, os primeiros sinais de rachadura já estavam lá.
Robbin Ruiter, ex-goleiro do Willem II e atual funcionário da KNVB, coordenava o evento como se fosse uma grande ação de marketing. “Isso aqui virou quase um festival”, comentou. Era a típica ilusão de controle: enquanto a seleção sorria para as câmeras, o futuro imediato preparava um abismo.
No mesmo domingo, a Suíça enfrentava a Islândia em Worb, numa exibição pública em um pequeno cinema local. Com cerca de 30 torcedores empolgados, o país anfitrião vibrava com cada ataque da sua seleção. A atmosfera leve, quase amadora, contrastava com a tensão crescente no centro de treinamento holandês. Enquanto a Suíça avançava com alegria e despretensão, a Oranje carregava nas costas o peso de ser — ou de já não ser — uma das favoritas ao título europeu.
🔸 Segunda-feira: Spiez esconde os medos sob a beleza
Spiez, com seu cenário de tirar o fôlego, se tornou um esconderijo perfeito para o desconforto interno. As montanhas, o lago e o castelo compunham uma paisagem de cartão-postal. Mas dentro da concentração da seleção, o ar já estava carregado. Dominique Janssen foi a porta-voz do dia na coletiva de imprensa. Sua fala era um retrato do momento: “Tenho paz de espírito, sempre posso recorrer ao básico”. Era um alívio pessoal, mas também um sintoma. A seleção vivia do básico. Era só o que restava.
Naquela noite, em Berna, a Espanha goleava mais uma vez. Seis gols sobre a Bélgica, onze em dois jogos. Uma máquina em campo. Era impossível não fazer o contraste com a Holanda: enquanto umas estavam em crescimento, as outras estacionavam em dúvidas.
Jonker, que sempre pregou um estilo idealista e ofensivo, já sabia que teria que mudar. Mas não o fez. Preferiu a fidelidade a suas ideias — mesmo que custasse caro.
🔸 Terça-feira: os bastidores da coletiva e as entrelinhas da tensão
No Estádio Letzigrund, em Zurique, o clima era de antecipação nervosa. A sala de imprensa fervia, tanto pelo calor quanto pelas expectativas. Primeiro, Sarina Wiegman e Alessia Russo apareceram para falar à imprensa. Wiegman, como sempre, foi cirúrgica nas palavras. Seu estilo reservado e calculado contrastava completamente com o de Jonker.
“Talvez Andries seja um pouco mais emotivo”, disse ela com diplomacia. Mas a frase ficou no ar como um lembrete de que, por trás das cordialidades, havia uma disputa velada entre a treinadora inglesa e o treinador holandês. Afinal, Wiegman conhece a Holanda por dentro. E o que ela viu em campo nos últimos dias não a assustava.
Quando Jonker apareceu, acompanhado de Vivianne Miedema, a temperatura emocional aumentou. Miedema foi direta: “Se a Beth [Mead] perder, ela nem vai falar comigo por uns dias. E tudo bem.” Mais do que uma provocação pessoal, era um sinal do quanto aquela partida mexia com todos. Era muito mais que um jogo: era um divisor de águas.
Jonker, por sua vez, usou seu espaço para atacar a narrativa da mídia: “A Holanda é um país do sul. Reclama, lamenta, chora. E ainda quer futebol bonito.” Ele ainda tentava minimizar o impacto das críticas, mas internamente já sentia o peso de um vestiário fragmentado e de uma comissão técnica sem respaldo completo.
🔸 Quarta-feira: o dia em que tudo ruiu
Desde as primeiras horas da manhã, a atmosfera era diferente. A imprensa holandesa venceu os jornalistas ingleses em um amistoso de futebol por 8 a 6. Uma brincadeira, claro, mas simbólica. A última vitória da Holanda no torneio já havia passado.
Zurique, que havia sido tomada por laranja, começou a dar lugar ao branco e vermelho dos ingleses. A Fan Walk — aquela caminhada de quase três quilômetros até o estádio — foi dominada por um contraste geracional. Jovens e idosos torcedores com visões diferentes, mas com o mesmo destino: o Letzigrund. Lá, o que se viu foi um massacre.
A Holanda foi atropelada pela Inglaterra. Um 4 a 0 que poderia ter sido pior. Um plano tático mal executado, escolhas duvidosas nas substituições, e um time sem alma. Sherida Spitse entrou no intervalo, mesmo sendo evidente que sua presença apenas deixava o time mais lento. Jonker parecia buscar símbolos em vez de soluções.
No fim, restaram olhares perdidos. E a matemática cruel: para se classificar, a Holanda precisaria vencer a França por 3 a 0. Nem os mais otimistas acreditavam.
Jonker tentou manter o ânimo. “Se perdermos a fé, então nem vamos a Basileia.” Mas a verdade é que o sonho já estava desfeito. O pesadelo, apenas começando.
🔸 Quinta-feira: entre lágrimas e tréguas
Na manhã seguinte à goleada sofrida para a Inglaterra, o ambiente em Spiez estava mais silencioso que nunca. A derrota pesava como uma pedra sobre os ombros das jogadoras, e isso era visível até no andar arrastado das reservas que apareceram para o treino aberto. O grupo titular permaneceu no hotel para sessões de recuperação física e, talvez, emocional.
Jornalistas holandeses observavam à beira do campo sem conseguir articular perguntas — já haviam escrito todas as análises possíveis nas horas que seguiram a catástrofe da véspera. “Parece que tudo acabou de repente”, disse um repórter veterano, com o olhar perdido no gramado. E ele tinha razão: o ciclo da geração que conquistou a Europa em 2017 e foi vice-campeã mundial em 2019 terminava ali, de forma melancólica.
À noite, a Suíça vibrava. Com um gol nos acréscimos de Riola Xhemaili, jogadora do 🇳🇱 PSV, a seleção anfitriã se garantiu nas quartas de final contra a poderosa Espanha. Enquanto isso, o entusiasmo em torno da Oranje se apagava como uma vela no fim da noite. Parecia simbólico que, justo quando as Leoas se arrastavam, uma jogadora que atua na Holanda tivesse sido a heroína da Suíça. Era um aviso silencioso: o talento ainda passa pelos Países Baixos, mas já não nasce lá com a mesma frequência.
🔸 Sexta-feira: o peso do adeus antecipado
A última coletiva oficial em Spiez foi marcada por tensão e tentativas de manter uma dignidade que já parecia em frangalhos. Sherida Spitse, a capitã histórica da equipe, atraiu a atenção de todos os microfones. Mas foi Jackie Groenen, uma das poucas titulares irretocáveis até ali, que melhor traduziu o sentimento coletivo: “Claro que vai ser muito difícil, mas temos que continuar acreditando”.
A frase soava mais como um mantra do que uma convicção. Todos sabiam que a França era um adversário superior em todos os aspectos: físico, técnico e mental. E a Holanda não tinha mais armas — nem em campo, nem no banco, nem nos bastidores. Apenas fé.
Naquela noite, a equipe de reportagem do FutebolHolandês.com.br assistiu a Espanha vencer a Itália por 3 a 1, em Berna. O desempenho espanhol foi clínico, preciso, quase entediante de tão eficiente. Enquanto isso, nossa seleção ainda buscava respostas sobre posicionamento, escalação e motivação. Era como assistir a dois mundos diferentes.
Após o jogo, seguimos de Worb para Basileia. Seria ali, no St. Jakob-Park, que se encerraria a participação desastrosa da Oranje. A última chance de dizer que, ao menos, caíram de pé.
🔸 Sábado: promessas e miragens na véspera do fim
Treino leve no Stadion Lachen. Todas as 23 jogadoras estavam presentes. Nenhuma surpresa tática, nenhuma alteração de última hora. Apenas a confirmação de que o time que entraria em campo contra a França seria o reflexo da tentativa desesperada de resgatar algum orgulho. Danielle van de Donk seria titular novamente. Ela, em coletiva, parecia ser a única ainda capaz de alimentar a chama da ilusão: “Acho que é uma pergunta idiota, claro que acredito, senão já teria feito as malas”.
Jonker também mostrava otimismo. Não o otimismo sereno de quem acredita. Era o otimismo performático de quem sabe que está diante do fim e precisa manter a pose. “Esta deve ser uma daquelas noites que, daqui a alguns anos, você dirá: ‘Eu estava lá’”, disse.
A frase tinha uma dose incômoda de verdade. Sim, quem esteve ali jamais esqueceria. Mas não pela virada histórica. E sim pelo fim oficial de um ciclo, de uma era, de uma ilusão.
🔸 Domingo: O milagre que não veio
Basileia estava linda. O céu azul, o entusiasmo da torcida, as ruas tomadas de laranja e os rostos ainda pintados. Parecia uma celebração — como se o jogo nem fosse importar. O chefe de imprensa da KNVB, Tom Elbersen, até enviou uma mensagem animada: “A caminhada dos torcedores começa às 17h45, o trajeto mais bonito até agora”. A positividade contagiante da mensagem contrastava com o que todos sabiam internamente: não haveria milagre.
Na entrada do estádio, as lágrimas já apareciam. Era como se a torcida soubesse o desfecho antes do apito inicial. O St. Jakob-Park, belíssimo e imponente, assistiu a uma Holanda diferente. Jonker fez quatro alterações: entrou Van de Donk, voltou Beerensteyn, e a defesa teve mudanças que priorizavam a experiência. Mas já era tarde.
A França abriu o placar cedo. A Oranje reagiu, é verdade. Empatou, tentou lutar, chegou a dar a sensação de que talvez… talvez. Mas, no segundo tempo, tudo desmoronou. O time recuava sempre que recuperava a bola. Jogadoras estagnadas, substituições tímidas, nenhuma leitura de jogo. Era o reflexo de um comando técnico perdido e de um elenco que não acreditava mais.
Ao final, 3 a 1 para a França. Eliminação precoce. Silêncio no apito final.
🔸 Conclusão: um ciclo encerrado, uma reconstrução obrigatória
Não há como suavizar a realidade: a Holanda fracassou. E fracassou feio.
Foram três jogos, duas derrotas humilhantes, uma vitória inócua e nenhuma identidade. A equipe que encantou a Europa em 2017 e desafiou os Estados Unidos em 2019 virou apenas uma sombra. Jonker falhou. As líderes do elenco falharam. E a KNVB, mais do que qualquer um, falhou. A condução desastrosa do processo de sucessão técnica — com Arjan Veurink assumindo o comando antes mesmo da bola parar de rolar — foi só a cereja no bolo de uma preparação fraca, de uma estratégia sem rumo.
Mas há esperança. Porque o talento ainda existe. Porque nomes como Victoria Pelova, Esmee Brugts, e Marisa Olislagers podem ser a base de algo novo. E porque a dor, quando bem trabalhada, pode gerar transformações profundas.
A KNVB precisa, com urgência, repensar toda a estrutura do futebol feminino. Mais investimento em base, menos improviso nas comissões técnicas, mais atenção à comunicação com o público. A torcida, mesmo em meio ao desastre, esteve lá. Coloriu ruas, cantou, caminhou, sofreu. A torcida fez sua parte.
Agora é a vez da federação fazer a dela. Porque, se quiser voltar a ser elite, a Holanda terá que começar do zero. E a reconstrução começa hoje.